Para falar de literatura nada melhor do que apresentar um grande clássico para o leitor. A história literária foi escrita por todos aqueles que um dia ousaram pegar papel e caneta ou mesmo se sentar à frente de uma máquina de escrever e, hoje em dia, no computador para registrar e organizar suas ideias que, mais tarde seriam apresentadas ao público. Todos que um dia fizeram algum tipo de registro são importantes nessa caminhada.
Desde 1455, quando Gutemberg, inventor da prensa, publicou a primeira obra impressa dentro de uma tipografia, a Bíblia, que a história da literatura vem crescendo e se diversificando. Isso considerando a impressão de livros como conhecemos ao longo da história. Se pegarmos somente os escritos, sem impressão tipográfica, podemos voltar ao Egito, mais de dois mil anos antes de Cristo, ou mesmo à civilização suméria com suas tábuas cuneiformes há mais de quatro mil anos.
O importante é que a escrita evoluiu ao longo do tempo e grandes obras foram deixadas de legado para a humanidade. Nessa cronologia literária precisamos abrir um espaço bem destacado para aqueles gênios que com seu talento e criatividade transformaram a literatura no que ela é hoje. Os maiores e mais consagrados autores da história e suas obras que se tornaram clássicos.
E nada mais justo que nesse espaço dedicado aos grandes mestres da literatura reservemos um cantinho bem especial para uma das maiores autoras de romances, contos, crônicas e ensaios, que se tornou brasileira de coração e uma das maiores figuras da nossa literatura no século XX. Vamos falar de Chaya ou melhor de Clarice.
Ucraniana de nascimento, brasileira de coração
Chaya Pinkhasivna Lispector nasceu na aldeia de Chechelnyk, na Ucrânia, no dia 10 de dezembro de 1920. Filha de Pinkhas e Mania Lispector a pequena Chaya nasceu num momento em que a família se preparava para deixar o país em função do antissemitismo surgido a partir do início da Guerra Civil Russa.
A família, de origem judaica, viu seus bens se perderem durante a Guerra Civil, iniciada em 1917 que culminaria com a vitória dos bolcheviques e a criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Em função da perda dos bens e da perseguição aos judeus, a família se viu obrigada a emigrar. Enquanto Pinkhas e Mania discutiam a possibilidade de deixar o país, surgiu a proibição dos judeus poderem emigrar. Com o crescente o sentimento antissemita, os pais de Chaya não encontraram uma alternativa que não fosse a adoção de meios ilegais para deixar a Ucrânia. Após uma primeira tentativa fracassada eles conseguem chegar à cidade de Soroco, que na época pertencia à Romênia e hoje integra a República da Moldávia. A decisão dos Lispector era emigrar para os Estados Unidos ou Brasil. As limitações de cotas para imigração para os Estados Unidos, principalmente de pessoas oriundas do leste europeu, levaram a família a optar pelo Brasil.
No dia 27 de janeiro de 1922 os Lispector conseguem os passaportes para emigrar para o Brasil. A família finalmente chega ao nosso país, indo para Maceió, onde já residia a irmã de Mania, Zicela e seu marido Joseph. Uma vez em terras brasileiras a família adotou nomes brasileiros, com exceção de Tania, que era um nome conhecido na nossa língua. Desta forma, o pai Pinkhas se tornou Pedro; a mãe Mania passou a se chamar Marieta; a irmã Leah virou Elisa; e a pequena Chaya ganharia o nome que se tornaria mundialmente famoso, Clarice.
Agora Clarice
A família ficou em Maceió por três anos. Nesse período Pedro foi mascate e deu aulas de hebraico. Em 1924 Clarice ingressa no jardim de infância. No ano seguinte a família muda-se para o Recife, para o bairro Boa Vista. O pai trabalha como vendedor ambulante de roupas. Aos dez anos, depois de assistir a uma peça teatral, Clarice escreveu sua própria peça, “Pobre menina rica”. Nesse mesmo ano, 1930, sua mãe vem a falecer. Como forma de homenageá-la Clarice escreveu sua primeira peça para piano. Em 1931 seu pai dá entrada com um processo de naturalização.
No início de 1935 Pedro Lispector e as filhas vão morar no Rio de Janeiro, no bairro da Tijuca, onde ela termina o curso ginasial e prossegue com seus estudos. No ano de 1939 ingressa na Faculdade Nacional de Direito, atual Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nessa época Clarice trabalhava como secretária, além de fazer traduções de textos científicos para revistas.
O ano de 1940 traria momentos marcantes para Clarice, para o bem e para o mal. Nesse ano ela publica o conto “Triunfo”, no semanário Pan, à época dirigido pelo Escritor Tasso da Silveira, sua primeira publicação. Inicia sua carreira no jornalismo indo trabalhar como redatora e repórter da Agência Nacional. Dentro da redação vai conviver com jornalistas e escritores do quilate de Antonio Callado, Lúcio Cardoso, José Condé e Francisco de Assis Barbosa. Passa a frequentar o bar Recreio, localizado na Cinelândia, no Centro do Rio de Janeiro. O local era ponto de encontro de autores consagrados como Vinícius de Moraes e Rachel de Queiroz. Nesse mesmo ano perde seu pai, falecido após a realização de uma cirurgia de vesícula.
Em 1942 ela começa a namorar Maury Gurgel Valente, com quem iria se casar no ano seguinte. O ano de 1943, que marcaria sua vida com a obtenção de sua naturalização, concedida pelo então Presidente Getúlio Vargas, passando a ser oficialmente brasileira e com a publicação de seu primeiro romance “Perto do Coração Selvagem”.
A literatura
A estreia de Clarice como escritora ocorre em 1943, com o lançamento de “Perto do Coração Selvagem”, um apanhado de escritos da autora, compilados nessa primeira obra que seria muito bem recebida pela crítica recebendo, inclusive, o prêmio Graça Aranha de melhor romance do ano. O escritor Lúcio Cardoso foi o maior incentivador de Clarice na produção do primeiro livro tendo, inclusive, sugerido o nome da obra.
Seu segundo romance, “O Lustre” foi publicado em 1946, mais uma vez comprovando o grande talento de Clarice. Além desses dois livros, a autora publicou diversas obras que se tornaram grande sucesso e clássicos da nossa literatura, como por exemplo:
– A Cidade Sitiada, romance (1949)
– Alguns Contos, contos (1952)
– Laços de Família, contos (1960)
– A Maçã no Escuro, romance (1961)
– A Paixão Segundo G.H., romance (1961)
– A Legião Estrangeira, contos e crônicas (1964)
– Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres, romance (1969)
– Felicidade de Clandestina, contos (1971)
– Água Viva, romance (1973)
– Imitação da Rosa, contos (1973)
– A Via Crucis do Corpo, contos (1974)
– A Hora da Estrela, romance (1977)
– A Bela e a Fera, contos (1978)
Além de uma rica produção de romances, contos e crônicas, Clarice Lispector dedicou parte de sua produção literária à literatura infantil, onde produziu obras como:
– O Mistério do Coelho Pensante, literatura infantil (1967)
– A Mulher Que Matou os Peixes, literatura infantil (1969)
– A Vida Íntima de Laura, literatura infantil (1974)
Tradutora
Além de seus próprios livros, Clarice desenvolveu relevante trabalho como tradutora, aproveitando o fato de dominar diversos idiomas como o inglês, francês, espanhol e hebraico.
Ao longo de sua carreira traduziu mais de 30 livros de escritores dos gêneros mais variados como Jorge Luis Borges, Agatha Christie, Georges Elgozy, Anva Selton, Bella Chagal, Alistair MacLean, entre outros. Ela também traduziu contos e artigos.
Vida Pessoal
Clarice se casou em 1943 Maury Gurgel Valente e acompanhou o marido diplomata por vários países como Itália, Suíça e Estados Unidos, além de ter viajado por toda a Europa e parte da África. Ele teve dois filhos com Maury, Pedro, nascido em 1948 e Paulo, que nasceu em 1953. Em função da carreira diplomática de Maury ambos nasceram no exterior, Pedro na Suíça e Paulo nos Estados Unidos.
Em 1959 eles se divorciariam e Clarice volta para o Brasil, para o Rio de Janeiro, com os filhos.
Ela era uma fumante inveterada e, em 1966, passaria por um drama pessoal por conta disso. Clarice adormeceu enquanto fumava, o cigarro acesso provocou um incêndio no apartamento. Ela sofreu diversas queimaduras por todo o corpo. A mão direita foi seriamente atingida e ela precisou receber enxerto de pele e fazer fisioterapia para recuperar os movimentos, que não foram totalmente recobrados.
Clarice foi diagnosticada, tardiamente, com câncer de ovário e travou uma batalha contra a doença. Faleceu três dias antes de completar 57 anos, no dia nove de dezembro de 1977.
Curiosidades
– Ela afirmava que era brasileira e que não possui nenhuma ligação com a Ucrânia, país em que nasceu, “Naquela terra eu literalmente nunca pisei: fui carregada no colo”, dizia ela;
– Clarice curtiu uma grande paixão pelo escritor Lúcio Cardoso, contudo nunca foi correspondida pois Lúcio era homossexual. Os dois se tornaram grandes amigos;
– Em 1945 Clarice troca correspondência com Manuel Bandeira, que lhe pede alguns poemas para publicar em uma antologia. Após o envio Bandeira manda a resposta em outra carta criticando sua poesia. Clarice então queimou os poemas que havia escrito. Mais tarde Manuel Bandeira se desculparia com a autora. “Você é poeta, Clarice querida. Até hoje tenho remorso do que disse a respeito dos versos que você me mostrou. Você interpretou mal as minhas palavras…”
– Um dos episódios mais marcantes de sua vida foi o incêndio em seu apartamento, em 1966, quando quase teve que amputar a mão direita;
Uma das maiores
A obra de Clarice Lispector é, sem dúvida, magistral, fazendo dela uma das maiores referências da nossa literatura e porque não dizer, da literatura universal.
As paixões e o ser humano eram a principal matéria-prima de sua obra. Era discreta e considerada uma escritora intimista e muito ligada ao fator psicológico dentro de sua narrativa.
Mas, no fundo, as definições pouco importam. O que vale realmente é a fantástica produção literária que Clarice Lispector nos legou e que venceu o tempo, tornando-se perene em nossa cultura.
Clarice Lispector é uma das maiores escritoras do século XX. Felizmente para nós, a Chaya, nascida na Ucrânia, adotou o Brasil como pátria e ajudou a enriquecer a nossa produção literária.
Viva Clarice Lispector!
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