Olá pessoal, estou de volta agora não para falar de uma dica, mas de várias, reunidas em uma grande série de 13 livros. Trata-se de uma belíssima reconstituição do período que envolve a segunda metade do século IX e a primeira do século X, que marca a formação da Inglaterra como ela está definada hoje.
Por abranger uma época muito remota, onde as informações documentadas eram escassas a obra vai misturar ficção com realidade. É, com certeza, um grande desafio para o autor, reconstituir fatos ocorridos há mais de mil anos, o que demanda um trabalho de pesquisa imenso e cuidadoso, para levantar todas as informações disponíveis para o período. Mas também é preciso muita criatividade para preencher as lacunas que vão aparecer nesse processo.
São muito os requisitos requiridos para um escritor trabalhar em um projeto como esse. Muito mais do que um bom texto, é preciso um profundo conhecimento de história, muita disposição para pesquisar fatos e datas e uma criatividade forte.
E foi exatamente isso que o autor desta série, Bernard Cornwell, fez para descrever o período histórico que marca a consolidação da Inglaterra. Para dar conta desse contexto Cornwell cria as “Crônicas Saxônicas”, a saga do guerreiro Uhtred. O trabalho deu tão certo que virou série da Netflix, “The Last Kingdom”.
Uhtred, Alfredo e a formação do Estado Inglês
Trata-se de um romance histórico sobre o perído de formação da Inglaterra anglo-saxônica. A narrativa é feita a partir da trajetória de vida de Uhtred de Bebbanburg, filho de um senhor saxão da Nortúmbria (região norte da Inglaterra), dono da fortaleza de Bebbanburg, e do Rei Alfredo, O Grande, Senhor do reino de Wessex, um dos quatro que vai formar a Inglaterra. O monarca combate as invasões nórdicas e inicia o processo de unificação inglês, que seria consolidado ao longo do reinado de seus filhos Eduardo e Ethelflaed e seu neto Ethelstan.
Estamos falando, no início da narrativa, do ano de 866, quando o terrítorio inglês era formado pelos reinos de Wessex, Ânglia Oriental, Mércia e Nortúmbria. Nesse período as invasões nórdicas eram frequentes e a instabilidade política muito grande.
A história de desenrola justamente durante essas invasões, quando Osbert, ainda criança, vê, pela primeira vez, uma invasão dinamarquesa no território da Nortúmbria. A chegada dos vikings mudaria completamente a história de Osbert. Primeiro com a morte de seu irmão mais velho, Uhtred, para os dinamarqueses, Osbert passa a se chamar Uhtred, o nome de seu pai. A tradição da época era que o filho primogênito levasse o nome do pai, como forma de dar continuidade à saga da família. Com a morte do irmão, Osbert passa a ser o filho mais velho e ganha o nome do pai. Logo depois seu pai também é morto pelos dinarmaqueses e Uhtred é capturado por eles.
Num curto espaço de tempo o garoto perde o pai, vê o tio Elfric tomar conta de Bebbanburg que, por direito seria sua, e fica sem referências, passando a viver uma realidade completamente diferente, sendo criado como um pagão nórdico. Esse fato será muito importante ao longo da história e será o grande dilema da vida de Uhtred, que vai viver entre o “martelo” (símbolo de Thor) e a “cruz” (símbolo da cristandade). Criado pelos vikings, absorve sua cultura e aprende a respeitá-la, o que o afastava do mundo cristão.
Uhtred vai viver toda sua história entre esse dilema, ser um saxão da Nortúmbria e ter que defender as terras inglesas e a relação que desenvolve com os dinamarqueses e sua cultura. Ele cresce, criado pelo dinamarquês Ragnar, e aprende a cultura nórdica, que adora Thor e muitos outros deuses, em contraponto ao cristianismo que está ganhando força nos territórios ingleses naquele período, principalmente pela devoção de Alfredo, Rei de Wessex, sul da Inglaterra, e a quem Uhtred vai jurar lealdade. Como homem de palavra, Uhtred luta ao lado de Alfredo, a quem respeita ao mesmo tempo que despreza sua religião e suas crenças. Aliás, o guerreiro da Nortúmbria vai passar toda a sua vida em constante atrito com os padres católicos, que vão odiá-lo, mas temê-lo, numa relação conflituosa que, em vários momentos vai afastá-lo de Alfredo.
O único padre de quem Uhtred realmente gosta é Beoca, que foi sacerdote de Bebbanburg quando a fortaleza pertencia a seu pai. Além disso, o padre vai acompanhar, mesmo que a distância, a trajetória de Uhtred, de sua infância até a vida adulta. Conhecendo o guerreiro desde criança, Beoca lhe dedica muito afeto e passa a vida tentando fazer com que ele abandone as práticas pagãs e adote o cristianismo.
A saga descreve a vida de Uhtred, depois do assassinato de do dinamarquês Ragnar, suas idas e vindas, quando é traído e se transforma em escravo, tendo que deixar, inclusive, a ilha inglesa. Seu retorno, suas lutas ao lado dos saxões contra os dinamarqueses, sua confusa relação de respeito e discordância com Alfredo, seus amores, seus filhos e sua eterna vontade de retornar a Bebbanburg e se vingar de seu tio Elfric. Ao mesmo tempo retrata a luta de Alfredo para manter o reino de Wessex e promover a unificação dos os demais reinos de língua inglesa, além da forte ascensão do cristianismo e as lutas religiosas do período, principalmente contra os povos pagãos.
A série abrange um período de aproximadamente 70 anos, no qual, em paralelo à saga de Uhtred, Cornwell descreve a formação do Estado inglês. Os encontros e desencontros que levaram à unificação dos quatro reinos que formariam o que hoje conhecemos como Inglaterra.
Bernard Cornwell
O autor nasceu em Londres, no dia 23 de fevereiro de 1944, filho de William Oughtred e de Dorothy Cornwell. Ainda muito novo foi adotado por Joe e Marjorie Wiggins, família que fazia parte de um grupo extremista cristão conhecido como Peculiar People (Pessoas Peculiares). Eles eram extremamente rigorosos na criação dele e dos outros quatro irmãos, todos adotados. Ele só conheceria os pais biológicos aos 50 anos de idade. A ascendência familiar do pai biológico, saxões que foram proprietários da fortaleza de Bebbanburg, será a base para a criação da personagem de Uhtred.
Bernard formou-se em história pela Universidade de Londres, em 1966. Após a morte do pai adotivo, passou a utilizar o sobrenome da mãe biológica, Cornwell. Ele começou sua vida profissional lecionando história. Depois foi trabalhar na rede de televisão BBC, em Londres, onde começou como pesquisador no programa Nationwide, passando, depois, a Chefe de Assuntos Televisivos Atuais da BBC, na Irlanda do Norte. Nessa época, residindo em Belfast, conheceu uma jovem chamada Judy, que estava em visita à Irlanda. Cornwell se apaixonou pela jovem e, como ela não podia permanecer na Inglaterra, ele foi para os Estados Unidos e lá eles se casaram em 1980. Cornwell deixou a BBC depois de 10 anos de trabalho e a Inglaterra e, até hoje reside nos Estados Unidos.
Cornwell começou a publicar seus livros em 1981 e nunca mais parou. Fez grande sucesso com as obras históricas, misturando ficção com a realidade, já tendo vendido mais de 30 milhões de exemplares de seus livros como “As Crônicas de Sharpe”, “As Crônicas de Arthur”, “As Crônicas Saxônicas”, “A Busca do Graal” e “As Crônicas de Starbuck”, entre outras. Confira a obra de Bernard Cornwell.
Livros da Série As Aventuras de Sharpe
- A Águia de Sharpe – 1981
- O Ouro de Sharpe – 1981
- A Companhia de Sharpe – 1982
- A Espada de Sharpe – 1983
- O Inimigo de Sharpe – 1984
- A Honra de Sharpe – 1985
- A companhia de Sharpe – 1986
- O Cerco de Sharpe – 1987
- Os Fuzileiros de Sharpe – 1988
- A Vingança de Sharpe – 1989
- Sharpe’s Waterloo – 1990*
- Sharpe’s Devil – 1992*
- A Batalha de Sharpe – 1995
- O Tigre de Sharpe – 1997
- O Triunfo de Sharpe – 1998
- A Fortaleza de Sharpe – 1999
- Sharpe em Trafalgar – 2000
- A Presa de Sharpe – 2001
- Sharpe’s Skirmish – 2002*
- A Devastação de Sharpe – 2003
- Sharpe’s Christmas – 2003*
- A Fuga de Sharpe – 2004
- A Fúria de Sharpe – 2006
- Não possuem título e português Série As Crônicas de Arthur
- O Rei do Inverno – 1995
- O Inimigo de Deus – 1996
- Excalibur – 1997
Série A Busca do Graal
- O Arqueiro -2000
- O Andarilho – 2002
- O Herege – 2003
- 1356 – 2012
Série As Crônicas Saxônicas
- O Último Reino – 2004
- O Cavaleiro da Morte – 2005
- Os Senhores do Norte – 2006
- A Canção da Espada – 2007
- Terra em Chamas – 2009
- Morte dos Reis – 2011
- O Guerreiro Pagão – 2013
- O Trono Vazio – 2014
- Guerreiros da Tempestade – 2015
- O Portador do Fogo – 2016
- A Guerra do Lobo – 2018
- A Espada dos Reis – 2019
- War Lord – 2020*
- Ainda não foi lançado no Brasil, nem possui título em português
Série As Crônicas de Starbuck
- Rebelde – 1993
- Traidor – 1994
- Inimigo – 1995
- The Bloody Ground – 1996*
- Não possui título em português
Série The Sailing Thrillers
- Wildtrack -1988
- Sea Lord / Killer’s Wake- 1989
- Crackdown – 1990
- Stormchild – 1991
- Scoundrel – 1992
Outras publicações
- A Crowing mercy – 1983
- Fallen Angels – 1984
- Coat of Arms / The Aristocrats – 1986
- Redcoat – 1987
- Stonehenge – 1999
- O Condenado – 2001
- Azincourt – 2008
- O Forte – 2010
- Tolos e Mortais – 2017
- Waterloo; The History of Four Days, Three Armies and Three Battles – 2014
- Sharpe’s Story – 2007
Curiosidades
- A palavra wyrd é muito usada por Uhtred ao longo de toda história na frase Wyrd Bið Ful Aræd (O destino é inexorável). Trata-se de um conceito anglo-saxão, que se refere ao destino de uma pessoa e tem raízes nas tradições pagãs;
- Bernard Cornwell se baseou em fatos reais para escrever a saga e a coloriu com sua imaginação, criando personagens e situações ao longo da trama, preenchendo lacunas que a história não conseguiu registrar;
- Em que pese a história ser baseada em fatos reais, ironicamente Uhtred, o grande protagonista da série, é uma personagem de ficção;
- A qualidade histórica que Cornwell empresta à obra é impressionante, mostrando grande conhecimento dos fatos históricos narrados no contexto da obra;
- Se Uhtred insistiu em ser pagão e resistiu em aceitar o cristianismo, teve um filho que abraçou de forma fervorosa a causa cristã;
- Uhtred é um personagem fictício mas é baseado, na realidade, nos ancestrais de seu pai biológico, Willian Outhred, cuja ascendência era saxônica e que foram proprietários da fortaleza de Bebbanburg (atual Castelo de Bamburgh).
- Bernard foi para os Estados Unidos para se casar com a jovem Judy, mas ele teve o Green Card negado e, então, decidiu permanecer nos EUA e tentar a vida como escritor, pois não precisaria de permissão do governo americano para tal;
- Ele fez uma parceria com sua esposa Judy e juntos escreveram três livros, publicados com Judy utilizando o pseudônimo de Susannah Kells: “A Crowing Mercy”, 1983, Fallen Angels, 1984 e Coat of Arms The Aristocrats), 1986. Nenhum dos três foi publicado no Brasil.
Entre o real e o imaginário
A obra de Bernard Cornwell é muito interessante, pois trata de fatos históricos, em geral, bem antigos, mas retratados da forma mais fiel possível. Cornwell, como historiador, pesquisa com muito cuidado os assuntos e faz descrições muito bem contextualizadas para eventos que fazem parte de um passado longínquo.
Na verdade, a narrativa de Cornwell é tão detalhada que permite ao leitor visualizar com certa facilidade o cenário descrito. Ele é um verdadeiro mestre neste formato de escrita.
Se por um lado o autor é cuidadoso ao descrever uma realidade muito distante da sua, no sentido temporal, ele também possui grande criatividade para preencher as lacunas que as pesquisas não conseguiram elucidar e se permite criar personagens e encaixá-los de forma magistral na narrativa, como faz com o imaginário Uhtred, que se torna um grande guerreiro a serviço do Rei Alfredo, O Grande, personagem real. Unindo o real e o imaginário, Uhtred e Alfredo, e apontando suas diferenças, suas discordâncias, suas fraquezas e medos, oferece uma grande humanidade à sua narrativa. Talvez essa seja a grande virtude da narrativa de Cornwell, ele apresenta guerreiros e heróis como humanos, com todas as suas qualidades e defeitos, sem endeusá-los e mantém uma descrição do período o mais próximo possível da realidade de uma época onde os homens marchavam constantemente para a guerra e se matavam com toda a frieza nos campos de batalha, nas ‘paredes de escudo’.
Quem já leu “As Crônicas de Arthur” vai entender bem o que estou dizendo. Diferindo da maior parte das narrativas sobre o lendário cavaleiro da Távola Redonda, Cornwell apresenta um Arthur bem diferente, longe da figura mítica descrita ao longo dos séculos por muitos. Ele mostra um Arthur que não era rei, mas o filho bastardo do Rei Uther, mas essa já é uma outra conversa, que vai ficar para outra publicação. O importante mesmo é registrar a qualidade da narrativa de Bernard Cornwell.
Se você conhece a saga do Senhor Uhtred deixe aqui o seu comentário sobre a obra e seu autor.
Se você não conhece, com certeza é uma ótima dica, principalmente para quem gosta de história, só é preciso um pouco de tempo para ler todos os livros da série.