É sempre bom falar de poesia, ainda mais quando podemos conversar sobre autores que são referência, poetas de grande e reconhecida qualidade literária. A poesia ultrapassa fronteiras, embala nossos sonhos, em geral românticos e suaves. Mas a poesia também pode ser forte, crítica e transformadora, até mesmo bastante acida diante da realidade que os olhos do poeta enxergam e suas mãos conseguem “verbalizar”.
A poesia é lírica, mas também pode ser contestatória. Aliás, deve ser, quando a realidade da vida assim exigir. O poeta, pela sua capacidade de transmitir para o papel sentimentos mais diversos também pode declamar sua indignação contra os problemas sociais que percebe a sua volta, se assim o desejar, é claro.
A poesia tem todo esse poder, pode ser suave ou cortante, lírica ou de contestação, romântica ou engajada. A poesia pode ser tudo, desde que o poeta assim o queira. E agora vamos falar de um poeta que fez de sua poesia um ato de contestação, resistência e inovação. Usou seus versos como forma de protesto e pagou o preço do exílio. Vivendo longe do Brasil, como ele mesmo afirmou, “bacharelou em subversão”. Uma subversão política e poética, pois também se indignava com a mesmice na construção literária.
Nesse espaço vamos falar de José Ribamar Ferreira, que se tornou imortal com o pseudônimo de Ferreira Gullar. Um personagem singular em nossa história literária. Foi poeta, escritor, crítico de arte, biógrafo, tradutor, ensaísta e memorialista. Transitou por vários espaços da nossa cultura, sempre com uma produção forte, visceral e genial.
José Ribamar
José Ribamar Ferreira nasceu em São Luís, Maranhão, em 10 de setembro de 1930, era um dos 11 filhos do casal Newton Ferreira e Alzira Ribeiro Goulart, família de classe média pobre. Sua infância foi típica de uma criança da época, dividia seu tempo entre a escola e as brincadeiras na rua, jogando bola ou nas pescarias no rio Bacanga, que nasce na capital maranhense. Aos 13 anos ingressou na Escola Técnica São Luís, pois buscava uma formação, ao mesmo tempo que começou a rabiscar suas primeiras poesias.
Ele considerava que havia passado a infância em um verdadeiro paraíso tropical e sofreu um choque ao ingressar na vida adulta, um cruel encontro com a realidade de quem saia das brincadeiras e precisava ganhar a vida, sempre difícil para quem é de origem humilde.
Ferreira Gullar
Aos 18 anos desistiu da Escola Técnica para se dedicar de vez à literatura. Passa a assinar seus textos como Ferreira Gullar e publica seu primeiro livro de poesias, “Um Pouco Acima do Chão”.
O pseudônimo surgiu da junção dos sobrenomes de seu pai, Ferreira, e de sua mãe, Goulart. O poeta mudou a grafia do sobrenome da mãe, que é de origem francesa. Ele dizia ser “um nome inventado, como a vida é inventada eu inventei o meu nome”. Ainda em São Luís, passou a frequentar o Grêmio Lítero Recreativo, onde participava da leitura de poemas, sempre aos domingos. Passou a estar presente nos bares da Praça João Lisboa, ponto de movimentos políticos e sociais da cidade.
Com 19 anos conheceu a poesia de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, uma novidade para ele. Ele vai adotar a poesia modernista e vai se transformar em um poeta radical, um experimentalista da poesia. Em 1951 vai para o Rio de Janeiro onde vai atuar como jornalista, trabalhando em revistas como Manchete e O Cruzeiro e no Jornal do Brasil.
Na poesia ela vai renunciar às fórmulas, defendendo que o poema deveria ser inventado a cada momento. Essa atitude vai levar Gullar a preparação de seu segundo livro, “A Luta Corporal”, que vai projetá-lo no cenário literário nacional.
A Luta Corporal e o Concreto
Lançado em 1954, “A Luta Corporal” é um livro que marca uma mudança da linha poética de Gullar. Alguns poemas desse livro marcam a ruptura do poeta com a linguagem poética existente e apontam o surgimento da poesia concreta, da qual ele será participante ao lado de poetas como Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. Ele vai participar, em 1956, da primeira exposição de Poesia Concreta, em São Paulo.
No ano seguinte, em 1957, rompe com o movimento concretista, em razão de um artigo publicado por Haroldo de Campos no Jornal do Brasil. Gullar condena o que considera um racionalismo exagerado no movimento e defende, também em artigo publicado no Jornal do Brasil, uma maior subjetividade. Dessa discordância vai surgir o movimento neoconcreto, que vai ter entre seus maiores expoentes, além do próprio Ferreira Gullar, o poeta Reynaldo Jardim e os artistas plásticos Lygia Clark e Hélio Oiticica.
Em 1959 Gullar divulga, no Jornal do Brasil, o ‘Manifesto Neoconcreto’. Na sequência ocorre a realização da 1ª Exposição Neoconcreta feita no Brasil.
Produção Literária
Independente das discussões sobre vertentes poéticas e culturais, que Ferreira Gullar vai lançar e defender, sua produção literária segue dinâmica e rica. O poeta vai levar ao extremo sua posição de que o poema deve ser inventado a cada momento, reinventando sua poesia a cada novo trabalho.
Com isso marcou o século XX e o início do XXI com uma obra ampla, rica, diversificada, inventiva e, em vários momentos, de ruptura e contestação. Confira abaixo sua produção literária.
Poesia
– Um Pouco Acima do Chão – 1949
– A Luta Corporal – 1954
– Poemas – 1958
– João Boa-Morte, Cabra Marcado para Morrer (cordel) – 1962
– Quem Matou Aparecida? (cordel) – 1962
– A Luta Corporal e Novos Poemas – 1966
– História de um Valente, (cordel; na clandestinidade, como João Salgueiro) – 1966
– Por Você por Mim – 1968
– Dentro da Noite Veloz – 1975
– Poema Sujo, (onde se localiza a letra de Trenzinho do Caipira) – 1976
– Na Vertigem do Dia – 1980
– Crime na Flora ou Ordem e Progresso – 1986
– Barulhos – 1987
– O Formigueiro – 1991
– Muitas Vozes – 1999
– Um Gato chamado Gatinho – 2005
– Em Alguma Parte Alguma – 2010
Antologias
– Antologia Poética – 1977
– Toda Poesia – 1980
– Ferreira Gullar – seleção de Beth Brait – 1981
– Os melhores poemas de Ferreira Gullar – seleção de Alfredo Bosi – 1983
– Poemas escolhidos – 1989
Contos e crônicas
– Gamação – 1996
– Cidades inventadas – 1997
– Resmungos – 2007
Crônicas
– A estranha vida banal – 1989
– O menino e o arco-íris – 2001
Memórias
– Rabo de foguete – Os anos de exílio – 1998
Biografia
– Nise da Silveira: uma psiquiatra rebelde – 1996
Literatura infantil
– Zoologia bizarra – 2011
Ensaios
– Teoria do não-objeto – 1959
– Cultura posta em questão – 1965
– Vanguarda e subdesenvolvimento – 1969
– Augusto do Anjos ou Vida e morte nordestina – 1977
– Tentativa de compreensão: arte concreta, arte neoconcreta – Uma contribuição brasileira – 1977
– Uma luz no chão – 1978
– Sobre arte – 1983
– Etapas da arte contemporânea: do cubismo à arte neoconcreta – 1985
– Indagações de hoje – 1989
– Argumentação contra a morte da arte – 1993
– O Grupo Frente e a reação neoconcreta – 1998
– Cultura posta em questão/Vanguarda e subdesenvolvimento – 2002
– Rembrandt – 2002
– Relâmpagos – 2003
Militância política e o exílio
Além da “militância” poética, onde Gullar já se mostrava um “subversivo” literário, buscando sempre a vanguarda da literatura, ele exerceu com muita fora a militância política, pagando o preço das posições assumidas.
Ferreira Gullar filiou-se ao Partido Comunista e participou da resistência à ditadura militar, após o golpe de 1964. Nessa fase de sua vida voltou sua poesia para as questões políticas e sociais. Em razão de sua postura foi preso pelo regime. Depois de solto atuou um tempo na clandestinidade e acabou tendo que se exiliar, vivendo em diversos países como União Soviética, Chile, Peru e Argentina. Durante esse período, quando estava vivendo em Bueno Aires, escreveu aquele que é considerado seu maior poema, sua obra-prima, o “Poema Sujo”, uma poesia com quase 100 páginas. O impacto dessa obra foi tal que ela acabou sendo traduzida para vários idiomas. Confira um trecho desse grande e belo poema:
Poema Sujo (trecho)
turvo turvo,
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menos menos
menos que escuro
menos que mole e duro, menos que fosso e muro: menos que furo
escuro
mais que escuro
claro
como a água? a pluma? claro mais que claro: coisa alguma e tudo
(ou quase)
um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas
azul
era o gato
azul
era o galo
azul
o cavalo
azul
Em 1977 volta ao Brasil, é preso e torturado, sendo liberado somente após grande pressão internacional. Trabalhou como roteirista na televisão, quando teve oportunidade de produzir ao lado de Dias Gomes.
Ferreira Gullar também se dedicou ao teatro, sendo um dos fundadores do Teatro Opinião, ao lado de Augusto Boal, criado após o golpe de 1964. Nessa fase escreveu importantes peças como “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come” e “A saída? Onde fica a saída?” ambas ao lado de Oduvaldo Viana Filho.
Prêmios
Sua obra, rica e diversificada, rendeu vários prêmios e indicações, entre eles:
– Prêmio do Concurso de poesia do Jornal de Letras com o poema “O Galo”, em 1950;
– Prêmios Molière e Saci com a peça “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”, em 1966;
– Indicação, feita por diversos professores do Brasil e dos Estados Unidos, para o Prêmio Nobel de Literatura, em 2002;
– Prêmio Jabuti de Melhor Livro de Ficção de 2007, com “Resmungos”;
– Prêmio Camões, em 2010;
– Título de Doutor Honoris Causa, da UFRJ, em 2010;
– Prêmio Jabuti de Poesia, em 2011
Academia
Em 2014 Ferreira Gullar seria eleito para a Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira número 37, cujo patrono é Tomás António Gonzaga, poeta e inconfidente mineiro. Gullar herdou a cadeira antes ocupada, entre outros, por Getúlio Vargas, Assis Chateaubriand, João Cabral de Melo Neto e Ivan Junqueira, esse amigo de Ferreira.
Vida Pessoal
O poeta foi casado com a produtora cultural Thereza Aragão, com quem teve três filhos, Luciana, Marcos e Paulo. Os dois filhos foram diagnosticados com esquizofrenia, o que fez com que ele passasse a falar muito sobre o assunto ao longo dos anos. Thereza viria a falecer em 1993.
Em 1994 Ferreira Gullar passou a viver com a poeta Claudia Ahinsa, com quem viveria até o seu falecimento ocorrido no dia 4 de dezembro de 2016, no Rio de Janeiro, vítima de pneumonia. Ele foi sepultado no Mausoléu da Academia Brasileira de Letras, que fica no cemitério São João Batista, no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro.
A inquietude cultural
Talvez essa seja a melhor forma de definir a grandeza do trabalho literário de Ferreira Gullar. Sua inquietude em relação à literatura fez com que buscasse constantes mudanças na forma de se expressar. Foi moderno, foi concreto, neoconcreto e, em todas as formas ousou, foi pioneiro, um autêntico revolucionário.
Gullar foi militante do Partido Comunista. Se como tal não viu a revolução política acontecer no Brasil, como poeta foi um revolucionário das letras, das palavras. Foi, sem dúvida, um poeta diferente e diferenciado. Marcou gerações e, com a força de sua poesia, fomentou a discussão sobre estilos poéticos, sobre a literatura e a própria cultura em nosso país.
Sua poesia pode não ser a mais admirada por aqueles que a enxergam como alguma coisa romântica e singela, mas não há como não reconhecer sua importância para a evolução da poesia em nosso país. Ferreira Gullar foi único e inovador. Por isso nada melhor do que encerrar esse papo com um poema que é um convite à reflexão sobre o próprio ser humano, “Traduzir-se”.
“Traduzir-se”
Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?
Agora é com você, não perca tempo e deixe aqui sua opinião sobre Ferreira Gullar e sua obra.