É hora de mais um clássico, daqueles que atravessam o tempo e permanecem firmes, encantando leitores por gerações e gerações. Vamos falar de um autor que viveu no século XVI e produziu uma obra lírica que se mantem como referência literária até os nossos dias.
Muita coisa sobre sua vida é incerta e não documentada, até mesmo sobre a data de seu nascimento existem controvérsias. Mas, sobre a sua obra não, essa foi muito bem registrada em livros que guardaram o testemunho de sua capacidade intelectual e do poder de sua escrita. Com isso ele se transformou em um grande ícone e símbolo de identidade para seu país, Portugal, e referência para os povos de língua portuguesa, além de ser considerado um dos grandes nomes da literatura ocidental.
Se ler “É nunca contentar-se de contente”, vamos conhecer um pouco mais da vida e da obra de Luís de Camões
A origem

Luís Vaz de Camões, segundo as informações mais seguras, nasceu em Lisboa no ano de 1524, filho de Simão Vaz de Camões e Ana de Sá e Macedo. Era sobrinho de D. Bento de Camões, cônego da Igreja de Santa Cruz de Coimbra, que segundo consta em alguns registros, teria influência direta em sua formação.
No ano de 1527, diante de mais um surto da Peste Negra, que assolou a Europa e Ásia entre os séculos XIV e XVI, o Rei D. João III deixou Lisboa, assolada pela doença, transferindo a corte para Coimbra. Simão Camões e sua família seguiram o Rei nesta mudança.
Existem muitas controvérsias também sobre a sua formação. Acredita-se que tenha recebido uma boa educação, principalmente por influência do tio, D. Bento, que o teria mantido em Coimbra, quando ele estava com 12 ou 13 anos, para que Camões estudasse. A versão mais comum era que o autor era um estudante indisciplinado, mas, ao mesmo tempo, gostava de obter conhecimento e teria se interessado por história, geografia, literatura clássica e astronomia. Aproveitando a influência do tio, teria estudado na universidade de Coimbra, mas seu nome não aparece nos registros da Universidade.
Existe, também, a possibilidade de que seu tio Bento tenha, ele mesmo, cuidado da instrução do sobrinho, uma vez que nessa época era chanceler da Universidade de Coimbra e prior do Mosteiro de Santa Cruz. Por volta dos 20 anos, Camões teria retornado a Lisboa para concluir os estudos.
Na juventude, mais uma vez, a versão comumente difundida é que teria sido um boêmio, frequentador de tavernas e presença constante em arruaças e brigas nesses locais. Além disso, teria ficado conhecido por suas relações amorosas tumultuadas.
No Exterior
Segundo algumas teorias, os casos amorosos frustrados teriam sido um dos motivos de Camões ter ingressado no Exército português, em 1547. O motivo pode ser duvidoso, mas o fato é que ele embarca para África, onde vai perder o olho direito durante um combate no Estreito de Gibraltar, em Ceuta. Ele fica dois anos nessa cidade

Em seguida retorna a Lisboa, voltando a sua vida boêmia. Em 1553, durante uma briga, fere um homem e é preso. Consta que por essa época teria escrito o primeiro canto de “Os Lusíadas”. Depois de solto, Camões embarca para as Índias, em uma nau da frota do filho de Pedro Álvarez Cabral, Fernão Álvares Cabral. Nessa viagem vão percorrer o caminho que Vasco da Gama navegara muitos anos antes. Passa um tempo em Goa, no oeste da Índia. Vai, em seguida, combater os mouros no Mar Vermelho e acaba indo parar em Ormuz, no Golfo Pérsico. Em 1556 retorna a Goa, que nesta época está sendo governada por D. Francisco Barreto, para quem o autor vai compor o poema “O Auto do Filodemo”. Apesar disso, Camões é envolvido em intrigas com D. Francisco e acaba sendo preso. Ficou na prisão até por volta de 1561, quando é solto e volta a Macau para desempenhar a função de Provedor-Mor, em 1562, ficando por lá até 1564 ou 1565. Retorna, então, a Goa, mas nessa viagem o navio em que ele estava naufraga e Camões consegue escapar nadando, dizem que levando consigo os originais de “Os Lusíadas”.
Em 1567, Camões embarcou para Moçambique, onde permaneceu até 1570, quando retorna para Portugal. Viveu, ao todo, 17 anos fora de Portugal, de 1553 a 1570.
A literatura
Camões começou a escrever suas poesias ainda jovem e, segundo dizem, seus versos eram muito apreciados pelas damas da corte portuguesa. Sua obra literária englobou quatro estilos literários, o épico; o lírico; o dramático; e o didático. Em todas elas ele foi brilhante. Entre seus principais livros estão:
– El-Rei Seleuco (1545), peça de teatro;
– Filodemo (1556), comédia;
– Os Lusíadas (1572), poema épico;
– Anfitriões (1587), comédia;
– Rimas (1595), coletânea da obra lírica;

O autor viveu, no século XVI, a fase final do Renascimento, época marcada por profundas mudanças na sociedade, que pontuaram a transição da Idade Média para a Idade Moderna. A cultura e a literatura estão inseridas nesse processo de transformação. A produção literária de Camões vai sofrer essa influência.
A nova onda cultural da época, envolvida em todas as transformações sociais daquele momento vai promover a substituição da preponderância da fé, do Deus como centro de tudo, pelo culto à racionalidade, do homem como centro.
Camões absorveu muito bem essa nova realidade e seu talento ficou demonstrado em todos os modos literários com os quais ele trabalhou, o lírico, o épico, o dramático e o didático.
Confira um poema lírico de Camões
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente,
É dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Não importa o que escrevesse, Camões o fazia com grande virtuosismo. Sua maior produção literária, “Os Lusíadas” é prova disso.

Os Lusíadas
“Os Lusíadas”, mais do que se transformar no grande livro escrito por Luís de Camões, tornou-se uma das grandes obras da história da literatura universal. É uma narrativa épica, que descreve, de forma grandiosa, os feitos do navegador português Vasco da Gama e sua tripulação na viagem em direção à Índia, cruzando o Cabo da Boa Esperança. A forma como Camões criou seus versos, exaltando as conquistas de seus conterrâneos, permitiu a comparação dos “heróis portugueses” como os feitos dos lendários heróis da antiguidade, dos poemas de Virgílio, “Eneida”, e Homero, “Odisseia” e a “Ilíada”.
O poema é composto por dez cantos, num total de 1102 estrofes e 8816 versos decassílabos, com dez sílabas métricas. O texto está dividido em partes:
A Proposição (introdução da obra); Invocação (das ninfas do Tejo); Dedicatória (ao Rei Dom Sebastião); Narração (viagem de Vasco da Gama); e Epílogo (conclusão). Confira trechos de cada um dos primeiros cinco cantos:
Canto I
As armas e os Barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta
Canto II
Já neste tempo o lúcido Planeta
Que as horas vai do dia distinguindo,
Chegava à desejada e lenta meta,
A luz celeste às gentes encobrindo;
E da casa marítima secreta he estava o Deus
Nocturno a porta abrindo,
Quando as infidas gentes se chegaram
Às naus, que pouco havia que ancoraram.
Dantre eles um, que traz encomendado
O mortífero engano, assi dizia:
«Capitão valeroso, que cortado
Tens de Neptuno o reino e salsa via,
O Rei que manda esta Ilha, alvoraçado
Da vinda tua, tem tanta alegria
Que não deseja mais que agasalhar-te,
Ver-te e do necessário reformar-te.
Canto III
Agora tu, Calíope, me ensina
O que contou ao Rei o ilustre Gama;
Inspira imortal canto e voz divina
Neste peito mortal, que tanto te ama.
Assi o claro inventor da Medicina,
De quem Orfeu pariste, ó linda Dama,
Nunca por Dafne, Clície ou Leucotoe,
Te negue o amor devido, como soe.
Põe tu, Ninfa, em efeito meu desejo,
Como merece a gente Lusitana;
Que veja e saiba o mundo que do Tejo
O licor de Aganipe corre e mana.
Deixa as flores de Pindo, que já vejo
Banhar-me Apolo na água soberana;
Senão direi que tens algum receio
Que se escureça o teu querido Orfeio.
Canto IV
Despois de procelosa tempestade,
Nocturna sombra e sibilante vento,
Traz a manhã serena claridade,
Esperança de porto e salvamento;
Aparta o Sol a negra escuridade,
Removendo o temor ao pensamento:
Assi no Reino forte aconteceu
Despois que o Rei Fernando faleceu.
«Porque, se muito os nossos desejaram
Quem os danos e ofensas vá vingando
Naqueles que tão bem se aproveitaram
Do descuido remisso de Fernando,
Despois de pouco tempo o alcançaram,
Joane, sempre ilustre, alevantando
Por Rei, como de Pedro único herdeiro
(Ainda que bastardo) verdadeiro.
Canto V
Estas sentenças tais o velho honrado
Vociferando estava, quando abrimos
As asas ao sereno e sossegado
Vento, e do porto amado nos partimos.
E, como é já no mar costume usado,
A vela desfraldando, o céu ferimos,
Dizendo:- «Boa viagem!»; logo o vento
Nos troncos fez o usado movimento.
«Entrava neste tempo o eterno lume
No animal Nemeio truculento;
E o Mundo, que co tempo se consume,
Na sexta idade andava, enfermo e lento.
Nela vê, como tinha por costume,
Cursos do Sol catorze vezes cento,
Com mais noventa e sete, em que corria,
Quando no mar a armada se estendia.

Curiosidades
– Camões era considerado um grande namorador, seu forte era a conversa sobre poesia e arte com as moças, que apreciavam seu trabalho literário;
– Ele perdeu o olho direito durante uma grande batalha;
– Foi preso mais de uma vez, na maioria por confusões e brigas em tavernas e nas ruas;
– Camões quase morreu durante um naufrágio, quando retornava a Goa. Diz a lenda que ele, além de conseguir se salvar, ele preservou o manuscrito original de “Os Lusíadas”;
– Em 1571 publica “Os Lusíadas”, um livro que se transformaria numa das mais importantes obras literárias da história;
– Por três anos viveu com uma pensão recebida da Coroa Portuguesa, no valor de 15 000 réis anuais;
– Morreu na miséria, em 1580. Nesse mesmo ano Portugal era anexado à Espanha e perdia sua autonomia política.
Frases
– “O fraco rei faz fraca a forte gente.”
– “Ah o amor… que nasce não sei onde, vem não sei como, e dói não sei porquê.”
– “Coisas impossíveis, é melhor esquecê-las que desejá-las.”
– “Jamais haverá ano novo se continuar a copiar os erros dos anos velhos.”
– “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades.”
Vida Pessoal
Com certeza a vida de Luís de Camões nada teve de monótona. Com as mulheres foi um conquistador, seduzindo por meio de seus versos. Foi guerreiro, participando de batalhas e aventuras pela África e o Oriente. Viajou, batalhou, desbravou, mas, acima de tudo, escreveu, com genialidade textos que se tornaram eternos.
Como muitos de sua época, Camões morreu pobre, sem o devido reconhecimento a seu talento literário, o que só aconteceria após a sua morte, ocorrida em 10 de junho de 1580, em Lisboa.

Genial
Camões foi um poeta incomum. A imagem que a maioria das pessoas guarda de um poeta é de um homem tímido, que se expressa por meio das palavras. O autor lusitano foi bem diferente disso, foi um desbravador. Embarcou em aventuras e batalhas que, inclusive, lhe custaram a perda de um olho.
Mas, não estamos aqui para julgar suas aventuras pessoais e sim para apreciar a qualidade literária de sua obra. E essa é inegável, pois sua produção literária atravessou o tempo e o consagrou como um dos maiores escritores da literatura portuguesa e mundial.
Por isso temos que reverenciar esse fantástico poeta, que navegou em mares nunca dantes navegados da literatura e nos legou uma obra magnífica.
Viva Camões!