É sempre muito bom poder trazer uma dica de leitura interessante para esse espaço para compartilhar com você. Grandes histórias, criadas na medida em que os autores tenham uma capacidade criativa que inspire, agrade e prenda o leitor. Estamos falando de imaginação, criatividade e bom texto.
Existem casos em que a história depende muito mais da qualidade da escrita do que da imaginação do autor. Estou falando dos livros baseados em fatos verídicos, pois a história já está organizada desde o início, pois trata-se de uma narrativa sobre algo que realmente aconteceu.
Se a aventura vivida justifica uma publicação o autor já andou metade do caminho. A partir daí é ter um bom texto e muito trabalho de redação, muita transpiração para chegar a melhor redação.
O bom autor pode produzir uma obra cem por cento fiel aos fatos ocorridos ou pode misturar ficção com realidade. Fatos históricos são fatos históricos, não há o que discutir, no máximo cabe a interpretação do autor sobre esses fatos. Agora, se você possuiu uma boa imaginação e consegue mesclar o real e o imaginário com perspicácia, a receita também é muito positiva. Podemos citar vários casos em que isso ocorreu e o sucesso foi imediato, aqui vou ficar citar apenas duas dicas que já postei anteriormente, como é o caso de “Crônicas Saxônicas” e “O Dia do Chacal”.
Nos dois casos a fórmula funcionou muito bem. Com base em fatos reais, bem pesquisados e com a inserção, na medida exata, de uma dose de fantasia, esses trabalhos foram consagrados como grandes obras da literatura.
No caso da dica que trago agora, essa receita também funcionou, mas, com um detalhe muito interessante. O livro foi lançado, fez muito sucesso e ganhou uma versão cinematográfica, também bem-sucedida. Só um detalhe: algum tempo depois o escritor foi contestado, surgindo a denúncia de que ele não seria o autor, mas que havia se apropriado do trabalho alheio.
Vamos conhecer agora o livro “Papillon”, o autor Henri Charrière, e a contestação.
O livro
A obra foi lançada em 1969, por Henri Charrière, um francês que foi condenado à prisão perpétua, em 1931 e enviado, em 1933, à Guiana Francesa, para onde muitos condenados na França eram encaminhados, uma prisão de segurança máxima na colônia da América do Sul.
A versão cinematográfica foi lançada em 1973, com direção de Franklin J. Schaffner, com Steve McQueen e Dustin Hoffman no elenco. A história ganhou uma refilmagem em 2018, com Charlie Hunnam e Rami Malek.
O livro narra a história de Charrière, apelidado de ‘Papillon’ por causa de uma tatuagem de borboleta que ele possuía no peito, que gerou seu apelido e daria nome ao livro.
Henri era um ladrão, um arrombador de cofres, do submundo do crime francês, que é preso e condenado à prisão, ao que tudo indica injustamente, pelo assassinato de um outro criminoso, um cafetão chamado Roland Le Petit. Henri Charrière sempre negou a autoria do crime. Preso e enviado para a Guiana Francesa, ele conhece outro condenado, Louis Dega, um falsificador, também condenado.
O livro descreve a crueldade do sistema prisional que os franceses adotavam em sua colônia sul-americana, assim como as figuras mais grotescas que eram enviadas para o local, o pior do submundo do crime no país. Como se o governo francês quisesse apagar a existência daquelas pessoas, mas ao invés de condená-las à pena de morte, o que não é França, elas recebiam outro tipo de condenação, a viver no esquecimento enfrentando os piores tipos de atrocidade, vivendo em um presídio de segurança máxima, de onde é praticamente impossível escapar. Um verdadeiro inferno na terra, não à toa a ilha onde ficava o presídio é chamada de Ilha do Diabo.
Nessa realidade o livro vai descrevendo as diversas tentativas de fuga de Papillon e seu companheiro Louis. A cada tentativa e um novo fracasso, ele vai enfrentando uma realidade cada vez pior sempre que retorna à prisão.
A descrição das crueldades e do sofrimento faz o leitor esquecer que Papillon é um ladrão, um criminoso, e ele acaba se tornando simpático aos olhos de quem lê.
São várias as tentativas de fuga, as traições, os retornos à prisão e os castigos que ele enfrenta ao longo dos anos como o confinamento em celas escuras, úmidas, em total isolamento e com pouca comida e água, além dos castigos físicos que sofria quando era recapturado.
O livro descreve um Charrière que fica preso na Guiana Francesa entre 1933 e 1941, quando consegue escapar de forma efetiva, chegando à Venezuela, onde seria preso e cumpriria um ano de reclusão. Depois ele seria solto e viveria no país, conquistando a cidadania venezuelana em 1944.
Uma saga que descreve, por um lado a crueldade e o sadismo que cercam o homem e por outro os limites que um ser humano é capaz de suportar em sua luta pela liberdade.
Henri Charrière
Charrière nasceu na França, em Saint-Étienne, no dia 16 de novembro de 1906, tinha duas irmãs e perdeu a mãe aos 10 anos de idade. Em 1923, quando estava com 17 anos, alistou-se na Marinha Francesa, servindo por dois anos.
Depois de deixar a Marinha, Charrière enveredou pelo caminho do crime, até ser preso em 1931, sendo condenado dois anos depois. Ele foi casado duas vezes. A primeira, em 1931, com a francesa Georgette Fourel. Muitos anos depois, já livre e vivendo na Venezuela ele se casaria com Rita Bensimon. Ele chegou a abrir restaurantes nas cidades de Caracas e Maracaibo.
Em 1969 lançaria um livro autobiográfico, em que relata sua prisão e as tentativas de fuga, até atingir a liberdade. Na época o livro vendeu mais de 1,5 milhão de cópias na França e muitos milhões em outros países, fazendo de Henri Charrière um escritor de sucesso.
O relato das atrocidades caiu como uma bomba sobre a França e fez com que o governo suspendesse o envio de presos para a Guiana Francesa, acabando por desativar o presídio em 1953.
Em 1970 ele recebeu o perdão do Sistema de Justiça da França por sua condenação. Henri Charrière faleceu em Madri, na Espanha, em 29 de julho de 1973, vítima de câncer na garganta.
A contestação
Enquanto curtia a fama de escritor, tornando-se uma celebridade, Charrière viu surgir a denúncia que ele era uma fraude. Segundo essa versão, o verdadeiro autor do livro se chamava René Belbenoit, que também cumprira pena na Guiana Francesa e que teria liderado a fuga de um grupo de presos, entre eles Henri Charrière. Essa história é relatada por Belbenoit em seu livro “A Ilha do Diabo”, publicado em 1938 e que foi vencedor do Prêmio Pulitzer. René, sugndo informações da época, era um homem culto, que falava vários idiomas, bem diferente do simplório Charrière.
Após a fuga bem-sucedida do grupo, Belbenoit foi parar em um garimpo de ouro na Guiana Inglesa, junto com seus colegas. Em 1940, em função da Segunda Guerra Mundial, ele vai para o Brasil, para Roraima, junto com os companheiros como Maurice Habert, Joseph Guillermin Marcel e o próprio Charrière, que depois iria para a Venezuela.
Por meio de sua amizade, por conta de anos de correspondência, com a escritora Blair Niles, René conseguiu publicar seus dois livros nos Estados Unidos. Além de “A Ilha do Diabo”, ele escreveu também “Hell on Trial”.
Com o dinheiro da venda de seus livros, René investiu em garimpos de ouro e diamante. Em 1942 comandou em grande assalto a uma empresa, em Boavista, capital de Roraima. Essa nova aventura criminosa serviria de inspiração para outro escrito de Belbenoit, um livro chamado “Banco”, que também iria parar nas mãos de Charrière.
Em 1955, com dificuldades para poder publicar seus novos manuscritos, “Papillon” e “Banco”, que era uma sequência desse primeiro, René faz contato com Henri, que já está na Venezuela e deixou com ele os dois manuscritos.
Em 1969, com Belbenoit vivendo no interior do Brasil, nos garimpos de Roraima, quase incomunicável, Charrière teria contratado o jornalista francês Jean Maille de Fronfrais, que também vivia na Venezuela, para fazer a adaptação do manuscrito que seria publicado em 1969 com o título de “Papillon”.
Polêmicas a parte…
A polêmica sobre a autoria do livro pode persistir, na verdade parece já estar comprovado que o autor é realmente René e não Henri Charrière. Mas, não estou aqui para julgar essa questão, que, no meu entendimento, é um problema jurídico. Então, a justiça que dê seu veredito.
Quero apenas falar sobre o livro, e esse é muito bom, uma obra bem interessante. Se a história foi aquela ou se ocorreram distorções, pouco importa. O fato é que a obra descreve com muita clareza e eficiência as mazelas do sistema social da época, no caso o francês da década de 1930. De um sistema de justiça que apresenta suas falhas à manutenção sistema prisional absurdo como o da Ilha do Diabo, o livro desnuda aquilo que, em geral, os governos quer varrer para baixo do tapete, o submundo que existe, mas que parte da população insiste em ignorar. Nesse contexto vamos falar da pobreza, da miséria, do empobrecimento de parte da população e a forma degradante como as pessoas excluídas são tratadas, vivendo á margem da justiça e da própria sociedade.
Por isso, que fique a polêmica sobre a autoria de “Papillon”, mas que o livro perdure e seja lido por muitas pessoas, pois é uma ótima obra literária e uma denúncia a uma sociedade corroída e que destrói seus cidadãos.
Se você já leu, deixe aqui sua opinião.
Se não leu, não espere para conhecer, vale muito a pena!