Quase Memória

É sempre muito bom poder estar aqui e deixar uma bela dica de leitura para todos vocês, principalmente quando essa dica envolve um livro especial, muito bem escrito e que trata da relação pai e filho, mas de uma forma muito singular, diferente da forma tradicional como o tema costuma ser abordado.

Nesse caso específico, o autor cria um misto de romance e livro de memórias, realidade com pitadas de ficção e, com isso, revive diversas histórias de seu pai. É um tema sensível, mas que, nesse livro, é abordado de forma magistral, com leveza, bom humor e um texto de primeira grandeza, marca registrada desse escritor.

Um livro se torna especial quando o tema desperta a curiosidade, a abordagem do autor é interessante e o texto, à medida que avançamos na leitura, mostra-se de alta qualidade. Essa é a fórmula para criação de uma grande obra. Essa receita sempre foi seguida à risca por Carlos Heitor Cony, um escritor magistral, dono de um reportório linguístico e uma qualidade textual que fizeram dele um dos grandes autores brasileiros do século XX.

Vamos agora conhecer o livro “Quase Memória”, que Cony escreveu a partir do recebimento de um envelope, endereçado a ele por seu pai.

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Quase memória

O enredo desse livro é muito interessante, além de ser simples. Tão simples quanto genial Cony cria uma fantástica narrativa lembrando passagens da vida de seu pai, o jornalista Ernesto Cony Filho. Tudo começa no dia que Carlos Heitor Cony recebe um envelope. Ele voltava do almoço, com a secretária e alguns amigos, quando recebeu a encomenda, na portaria do hotel em que costumava almoçar algumas vezes por semana, que lá fora deixada por uma pessoa anônima. A princípio parecia que alguém enviara o original de um livro para ele. Mas, ao examinar com mais cuidado o envelope, Cony percebe algo muito interessante na letra que endereçava a encomenda para ele, “Para o jornalista Carlos Heitor Cony. Em mão.” A letra era de seu pai. Além da letra, vários detalhes no envelope lembravam seu pai, o nó do barbante que amarrava o embrulho, o tipo de papel, até o cheiro do pacote, uma mistura de fumo e água de alfazema, era de seu pai.

Tudo naquele envelope relacionava-se com seu pai. O detalhe mais interessante e diferente naquela história é que Cony recebia aquele envelope que, tudo levava a crer, fora remetido por ele ao filho, em 1995, dez anos após a morte de Ernesto, ocorrida em 14 de janeiro de 1985, aos 91 anos de idade.

Uma doce viagem

Cony sobe com o pacote para sua sala onde se tranca. Ele se senta diante do envelope e, enquanto o analisa, vai rememorando a vida de seu pai, nas décadas de 1930, 40 e 50. Unindo passagens do cotidiano, lembranças de família e acontecimentos públicos o autor nos convida para uma doce viagem ao passado, em que vai relembrar passagens da vida de seu pai, definido por ele mesmo como um sonhador.

A obra, é claro, traz uma carga emocional e tem a visão que o jovem Cony tinha de seu pai. A narrativa apresenta as idas e vindas da relação de Cony com seu pai, um homem cheio de desejos e manias, ávido por grandes realizações e com muito amor por sua família.

Deliciosas lembranças envolvendo balões, perfumes, cemitério, política e outras vão se apresentando ao leitor na medida em que Cony, diante do envelope, vai refrescando a memória. Ao longo do texto Cony abre o coração, revelando sua relação de certa forma conturbada com o pai, que na verdade sempre fora uma figura preponderante em sua vida.

Além de ser uma bela narrativa, “Quase Memória” é uma passagem significativa na obra do autor, pois marca seu retorno à literatura após uma ausência de 21 anos. 

O autor

Jornalista e escritor Carlos Heitor Cony Quase Memoria

Carlos Heitor Cony nasceu do dia 14 de março de 1926, no Rio de Janeiro, filho de Ernesto Cony Filho e de Julieta Moraes Cony. Cresceu no bairro do Lins de Vasconcelos, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Somente aos quatro anos ele começou a falar, mesmo assim com muita dificuldade. Depois Cony estudou em um seminário, que abandonou pouco antes do que seria sua ordenação como padre. Começou a estudar filosofia.  Em 1947 interrompe os estudos para cobrir as férias de seu pai como jornalista no Jornal do Brasil. Trabalharia ainda como funcionário da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Em 1952 vira redator da Rádio Jornal do Brasil. Ao longo de sua carreira, trabalhou em diversos veículos de comunicação como os jornais Correio da Manhã, Jornal do Brasil e Folha de São Paulo e as revistas Manchete, Desfile, Fatos & Fotos e Ele Ela.

Em 1958 publicou seu primeiro livro, “O Ventre”. A esse seguiram-se diversas obras que consagrariam a carreira do autor, como:

 – A Verdade de Cada Dia – 1959

– Tijolo de Segurança – 1960

– Informação ao Crucificado – 1961

– Matéria de Memória – 1962

– Antes, o Verão – 1964

– Balé Branco – 1965

– Pessach: a Travessia – 196

– Pilatos – 1974

– Quase Memória – 1995

– O Piano e a Orquestra – 1996

– A Casa do Poeta Trágico – 1997

– Romance sem palavras – 1999

– O Indigitado – 2001

– A Tarde da sua Ausência – 2003

– O Adiantado da Hora – 2006

– A Morte e a Vida – 2007 

Além desses livros, Cony produziu uma vasta obra que inclui crônicas, contos, ensaios, artigos, adaptações para a televisão, roteiros para cinema e obras produzidas em parceria com outros autores.

Prêmios

Essa rica produção cultural renderia a Cony diversos prêmios, entre eles podemos destacar:

– Prêmio Manuel Antônio de Almeida, com “A Verdade de Cada Dia”, em 1957;

– Prêmio Manuel Antônio de Almeida, com “Tijolo de Segurança”, em 1958;

– Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra, em 1996;

– Prêmio Jabuti de 1996, da Câmara Brasileira do Livro, por “Quase Memória”;

– Prêmio ‘Livro do Ano’, da Câmara Brasileira do Livro com “Quase Memória” em 1996;

– Prêmio ‘Livro do Ano’, da Câmara Brasileira do Livro com “A Casa do Poeta Trágico” em 1997;

– Prêmio Nacional Nestlé de Literatura de 1997, por “O Piano e a Orquestra”;

– Prêmio Jabuti de 1997, por “A Casa do Poeta Trágico”;

– Prêmio Jabuti 2000, por “Romance sem Palavras”

– Recebeu a comenda Ordre des Arts et des Lettres, em 1998, do Governo Francês, uma homenagem feita a personalidades do mundo da literatura;

– Recebeu o ‘Grande Prêmio da Cidade do Rio de Janeiro’, em 2014, da Academia Carioca de Letras.

Academia Brasileira de Letras

Carlos Heitor Cony livros ABL literatura academico

Carlos Heitor Cony foi eleito para a ABL em março de 2000, tornando-se o quinto ocupante da cadeira número 3, cujo patrono é o jornalista, professor e poeta Artur de Oliveira.

Curiosidades

– Carlos Heitor Cony morreu em 2018, aos 91 anos, mesmo idade que seu pai faleceu.

– Venceu duas vezes o Prêmio Manuel Antônio de Almeida, com romances ainda não publicados, concorrendo com pseudônimos. Com “A Verdade de Cada Dia”, concorreu com o nome de Isaías Caminha; e com “Tijolo de Segurança” como José Bálsamo;

– “Quase Memória”, de 1995, é o décimo romance publicado por Cony e marca seu retorno após 22 anos sem lançar um livro, o último havia sido “Pilatos”, em 1973;

– A relação de Cony com a escrita começou ainda muito criança por causa de problemas com a fala. O autor começou a falar somente aos quatro anos e tinha muita dificuldade, pronunciava muitas palavras de forma errada, sendo discriminado na escola por conta disso. Para suprir essa lacuna começou a escrever, para ele era mais fácil;

– A relação de Cony com o pai era confusa. Mesmo depois da morte deste Cony tinha um certo receio que, de alguma forma, voltasse a encontrá-lo, que ele apareceria a qualquer momento. Com essa questão na cabeça e a partir de um sonho que teve, no qual, durante o expediente de trabalho, recebia um embrulho, que tudo indicava teria sido encaminhado por seu pai, surgiu o enredo do livro “Quase Memória”.

A relação pai e filho e a beleza da escrita

“Quase Memória” é uma obra genial produzida por Carlos Heitor Cony. Genial pela qualidade da escrita de Cony. Sou fã do autor e tive a oportunidade e o prazer de ler diversos de seus livros. Entre eles posso destacar “A Casa do Poeta Trágico”, “A Tarde da sua Ausência”, “O Piano e a Orquestra” e “O Beijo da Morte”, esse escrito em parceria com Anna Lee. Todos excelentes, mas “Quase Memória” tem algo especial, pelo menos para mim.

É um livro que fala da relação pai e filho, isso, com certeza, remete o leitor a suas relações pessoais. Meu pai faleceu aos 90 anos, tive o privilégio de tê-lo ao meu lado por 52 anos. Ele foi uma presença constante e marcante em minha vida, seja com conselhos, por meio de seu exemplo como homem, marido e pai. Não bastasse esse fato, existe a questão literária. O texto de Cony é primoroso. “Quase Memória” é o tipo de livro que você começa a ler e não quer mais parar.

Ler as obras de Carlos Heitor Cony vale muito a pena, ainda mais no caso de “Quase Memória”, uma leitura, leve, divertida e, ao mesmo tempo carregada de sentimentalismo. Para mim o melhor livro que ele escreveu.

E você, gostaria de ler um livro que remetesse à sua relação com seu pai?

Deixe aqui sua opinião sobre o livro e o autor.

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Escritor Carlos Carvalho

Carlos Carvalho

Sou escritor, amante de literatura e apaixonado pelos mistérios criados por Agatha Christie. Escrevo contos, poesias e romances. Sendo o Romance Policial meu gênero literário preferido. Sou formado em Jornalismo e pós-graduado em Assessoria de Imprensa e Comunicação Empresarial.

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