A Festa do Bode

A história dos povos da América, em especial da Central e do Sul, é marcada pela força, tomada de poder e agressão às populações nativas. Desde o período dos descobrimentos, quando espanhóis e portugueses por aqui chegaram e se apossaram das terras do “além-mar” e, também, das riquezas que aqui existiam, como o ouro e a prata, aniquilando os povos originários. Os Maias, Astecas, Incas e várias populações indígenas do Brasil foram vítimas dessa violência, que tem se repetido ao longo dos séculos e, muitas vezes, a força tem deixado a história mal contada.

O passado recente das Américas não tem sido diferente. No século passado os dois continentes foram assolados por golpes de Estado que nos legaram ditaduras sanguinárias como aconteceu, por exemplo, na Nicarágua, Guatemala, República Dominicana, Chile, Argentina, Paraguai, Bolívia e Brasil. Houve ainda uma revolução, a Cubana, em que a população foi aderindo à tentativa de derruba do ditador Fulgência Batista, o que acaba ocorrendo em 1959, originando a revolução que levou Fidel Castro ao poder.

Várias dessas histórias foram narradas em livros e filmes, que tentaram resgatar esse passado, na maioria das vezes sombrio, que legou a vários desses países dias de repressão, corrupção, abusos de todos os tipos e assassinatos como forma de aniquilação dos adversários políticos.

Um dos grandes livros escritos sobre um desses casos foi “A Festa do Bode”, do escritor peruano Mario Vargas Llosa, em que o autor aborda a ditadura de Rafael Trujillo, ditador da República Dominicana que manteve o poder por 31 anos. Uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina. Vamos conhecer um pouco mais a narrativa de Vargas Llosa.

A Festa do Bode

A Festa do Bode livro escritor Mario Vargas Llosa mista Ficcao e vida real realidade literatura

Antes de falar do livro, vale um esclarecimento sobre o título. A Festa do Bode é uma comemoração popular, realizada em vários países latino-americanos, em que bodes são mortos, como forma de sacrifício, e assados para serem comidos. A festa é embalada com muita bebida e dança.

Nesse livro, misturando ficção e realidade, Vargas Llosa trata da ditadura violenta e sanguinária de Rafael Leónidas Trujillo Mollina, que governou a República Dominicana de 1930 a 1961, quando foi assassinado. Na obra o autor descreve três histórias diferentes dentro de sua narrativa, que acabam se entrelaçando.

Em uma parte descreve o último dia de vida de Trujillo, mostrando a dimensão do poder construído pelo ditador, um megalomaníaco que se julga um semideus, o senhor da vida e da morte de seu povo. Mas mostra, também, um Trujillo aos 70 anos, há três décadas, no poder, um homem cruel, que gostava de violar jovens e que convivia com uma doença na próstata, que fazia com que ele tivesse problema urinários, dificuldade de controle da micção, e que acaba por levá-lo à impotência sexual, um mal que nem o mais cruel dos ditadores poderia vencer.

Em outra parte da narrativa o autor descreve a história dos homens que tramaram a emboscada que acaba por tirar a vida de Trujillo e faz desmoronar a ditadura sustentada por este há tanto tempo. Alguns dos responsáveis pela trama da morte do ditador eram antigos colaboradores deste e, por isso, são descritas várias histórias sangrentas dos porões da ditadura. Um dos casos mais famosos foi o do assassinato das irmãs Maria Teresa, Patria e Minerva Mirabal, conhecidas como ‘Las Mariposas’, que eram integrantes de um grupo que lutava contra o regime de Trujillo, o Movimento Revolucionário 14 de Junio. No dia 25 de novembro das 1960 às três irmãs Mirabal e o motorista delas, Rufino de la Cruz, tinham visitado os maridos de Maria Teresa e Minerva, que estavam presos. Quando voltavam para casa, foram paradas por um grupo, que servia ao governo. Os quatro foram torturados até a morte. Depois o grupo tentou simular um acidente com o veículo, para disfarçar a natureza das mortes, algo comum na maioria das ditaduras.

A terceira história descrita no livro por Vargas Llosa é de uma mulher chamada Urania Cabral, filha do ex-senador Agustín Cabral. Urania é uma mulher de 49 anos, que deixou a República Dominicana aos 14 anos e nunca mais voltou. Ela retorna, depois de 35 anos, para rever o pai, já muito velho e doente. Ela vai revelar, para suas tias e primas, uma história assombrosa. Seu pai, político influente na República Dominicana que caíra em desgraça com o regime de Trujillo busca recuperar o prestígio com o ditador e acaba oferecendo a própria filha Urania, na época com 14 anos, para ser abusada sexualmente pelo ditador.

A narrativa das histórias vai se cruzando, em alguns momentos de uma forma dramática, em outros de uma maneira cruel e sanguinária, o que marcou a trajetória de Rafael Trujillo à frente do governo dominicano. A realidade e a ficção, criada pelo autor, se cruzam de maneira sublime

Mario Vargas

A Festa do Bode livro escritor Mario Vargas Llosa mista Ficcao e vida real realidade

Jorge Mario Pedro Vargas Llosa nasceu na cidade de Arequipa, no Peru, no dia 28 de março de 1936. Filho único de Ernesto Vargas Maldonado e Dora Llosa Ureta, seus pais se separam meses após o casamento, por isso o escritor só conheceria o pai aos dez anos de idade. Após a separação sua mãe foi para a Bolívia, para Cochabamba. Depois de alguns anos mãe e filho voltam ao Peru, para a cidade de Piura, onde o avô de Vargas Llosa vai ocupar um cargo político. Em 1946 eles vão para a capital do país, Lima, quando ele conhece seu pai. Nessa época seus pais se reconciliam e voltam a viver juntos. Quando completa 14 anos ingressa no Colégio Militar Leôncio Prado, como aluno interno, onde ficará por dois anos.

Em 1953 vai para a Universidade Nacional Mayor de San Marcos, uma das mais tradicionais e antigas da América Latina, onde vai estudar Letras e Direito.

Vargas Llosa se casa aos 19 anos, com Julia Urquidi e precisa trabalhar em vários lugares para sustentar a família. Em 1958 ganha uma bolsa e vai estudar na Espanha, na Universidade Complutense de Madri, obtendo o doutorado em Filosofia e Letras. Depois, vai morar por um período na França. Divorcia-se de Julia em 1964 e, no ano seguinte, casa-se com a prima Patricia Llosa, com quem vai ter três filhos, Álvaro, Gonzalo e Morgana.

Sua carreira literária tem início em 1959, quando publica seu primeiro livro, “Os Chefes”. Em 1963 publica “Batismo de Fogo”, livro que lhe daria notoriedade. Entre os diversos romances que escreveu estão:

– Os Chefes – 1959

– Batismo de Fogo – 1963

– A Casa Verde – 1966

– Os Filhotes – 1967

– Conversa na Catedral – 1969

– Pantaleão e as Visitadoras – 1973

– Tia Júlia e o Escrevinhador – 1977

– A Guerra do Fim do Mundo – 1981

– História de Mayta – 1984

– Quem matou Palomino Molero? – 1986

– O falador – 1987

– Elogio da Madrasta – 1988

– Lituma nos Andes – 1993

– Os Cadernos de Dom Rigoberto – 1997

– A Festa do Bode – 2000

– O Paraíso na Outra Esquina – 2003

– Travessuras da Menina Má – 2006

– O Sonho do Celta – 2010

– O Herói Discreto – 2013

– Cinco Esquinas – 2016

– Tempos Ásperos – 2019

Vargas Llosa escreveu ainda diversos ensaios, peças teatrais e um livro de memórias “Peixe na Água”.

A qualidade de sua obra lhe rendeu diversos prêmios. Entre os mais importantes podemos citar:

– Prêmio Príncipe das Astúrias de Literatura – 1986;

– Prêmio Miguel de Cervantes – 1994;

– Prêmio Nobel de Literatura – 2010.

Além da literatura, também teve uma forte atuação política. Foi simpatizante da revolução cubana e de Fidel Castro, aproximando-se do pensamento socialista. Depois converte-se ao liberalismo e candidata-se à presidência do Peru em 1990, encabeçando uma coligação de centro-direita que acaba sendo derrotada no segundo turno por Alberto Fujimori.

Uma realidade triste e sangrenta

Intercalando as três histórias Vargas Llosa constrói uma narrativa crua e seca de uma ditadura sangrenta, expondo os dramas e as fragilidades pessoais de todas as pessoas, pois nenhum de nós está acima do bem e do mal. Não somos invencíveis e mesmo os mais poderosos podem ter um fim trágico.

A narrativa é muito interessante e retrata, de forma bem concreta, um mal que assolou a América Latina no século XX, as ditaduras que se impuseram à força e tanta desgraça, dor e morte espalharam pelos dois continentes.

A realidade e a ficção, criada pelo autor, se cruzam de maneira sublime, revelando o lado mais sombrio do ser humano. Um livro que deve ser lido por todos, principalmente por aqueles que acham que uma ditadura pode ter um lado bom. Não existe bondade num regime ditatorial como o de Trujillo e muitos outros que já existiram, precisamos aprender a lição de uma vez por todas.

Compartilhe este post nas suas redes:

Deixe um comentário

Quem leu este post também gostou:

Escritor Carlos Carvalho

Carlos Carvalho

Sou escritor, amante de literatura e apaixonado pelos mistérios criados por Agatha Christie. Escrevo contos, poesias e romances. Sendo o Romance Policial meu gênero literário preferido. Sou formado em Jornalismo e pós-graduado em Assessoria de Imprensa e Comunicação Empresarial.

Mais Lídos

Categorias

Meus Livros

Conheça todas as minhas obras.

Newsletter

Se você gostou desse espaço e quer receber com exclusividade as novidades que vão pintar por aqui, faça o seu cadastro!

Convidados

Se você quer participar desta viagem cultural e publicar seu texto aqui no meu site, clique no botão abaixo, preencha corretamente os seus dados e aguarde o contato!