Preciso começar ressaltando a alegria de receber esse convite tão afetivo para falar um pouquinho sobre mim e meu trabalho.
Estou envolta em letras, palavras, frases, livros, pessoas, quando não estou produzindo meus próprios textos, estou ensinando crianças pequenas a fazê-lo. Sou professora alfabetizadora de crianças do segundo ano do ensino fundamental.
Acredito que a literatura, a escrita, as palavras nos libertam e nos fazem viajar para longe ou então, manter os olhos voltados para a realidade, uma realidade tão nua e crua que seria melhor que fosse mesmo ficção.
Apesar de ensinar crianças a ler e escrever, em meus escritos e publicações, prefiro atingir o público adulto, em sua maioria mulheres, que buscam na leitura uma fonte de prazer e entretenimento muitas vezes tão distante da vida “real”.
Comecei meio intuitivamente a escrever meu primeiro livro para fazer diferente do que eu estava acostumada a ler. Queria ousar, por meio de uma personagem curiosa e com pouca experiência de vida, explorar o mundo através dos olhos dela e buscar um universo que eu nem sabia existir.
Fui criada com liberdade no discurso, mas tolhida em relação ao espaço e tempo. Sendo muitas vezes mais “careta” até do que quem havia me criado. Quando percebi que as ousadias da minha personagem me incomodavam, e incomodavam a outras pessoas eu compreendi ser justamente para isso que eu precisava escrever. Para me libertar e libertar, de certa forma, tantas mulheres tolhidas, muitas vezes de sua sexualidade resultado de criações “machistas” ou “tradicionais”.
Em minha criação, convivi com mulheres que deveriam se anular pelos filhos ou pelo marido. E outras, de forma completamente contraditória, numa posse extrema de seu próprio potencial, anularam-se pelo trabalho, pelo sucesso, como uma forma desesperada para manter-se no topo, para ser igual ou melhor do que outros, do que ela mesma, mas de certa forma, roubando-se do que realmente gostaria ser.
“O equilíbrio está no meio”, nem para cá, nem para lá… Mas onde está a régua para medir isso?
Escrevi sobre mocinhas ousadas, que pagaram por suas escolhas e muitas mulheres se identificaram com isso. Contei sobre uma personagem mimada, insegura, que fora abandonada pelo noivo, e suava para estacionar o carro e, também, encontrei mulheres que passaram pelo mesmo que ela.
Resolvi ir mais a fundo, falar sobre abusos (violentos ou não), e as consequências disso na vida das pessoas, as escolhas, novamente elas, e pasmem… Representei muitas mulheres que também passaram por isso.
Quero aqui registrar em como a arte imita a vida, ou vice-versa, em como tem gente que guarda segredos e luta sozinha contra fantasmas que deveriam protegê-las.
Tantas notícias pipocaram nas mídias. Indignações, amparo, familiaridade e tudo devido à sexualidade, mal trabalhada, não orientada, não protegida.
Meninas tornando-se mães antes da hora. Adolescentes sendo acusadas ao invés de serem protegidas. Mulheres sendo roubadas de momentos preciosos, tudo porque foram tratadas como objetos, objetos para dar prazer ao mais forte, ao mais poderoso, ao mais egoísta.
E assim, continuamos com muitas mulheres quebradas, incompletas, tolhidas de uma parte tão bela de suas vidas, que deveria ser bonita, natural. Embelezada pelas famosas “borboletas na barriga”, pelo primeiro beijo, pela mão na mão, pelo anseio de um olhar que promete algo mais, e entrega, algumas páginas adiante, quando finalmente o mocinho apaixonado aparece.
Mocinhos, também falo deles, pela cobrança dos pais que esperam deles, coisas que não podem dar. Que lhes obrigam a escolher o que não escolheriam se fossem criados autônomos, independentes…
Tem também aqueles que fazem suas próprias escolhas e novamente as consequências lhes são entregues, e cobradas, nas páginas seguintes.
Gosto de fazer as pessoas refletirem ao lerem o que escrevo, de viver como se fosse o próprio personagem, fazer sair da zona de conforto, incomodar… Refletir, não escrevo para os outros, não aceito encomendas, deixo os personagens entregarem sua mensagem através de mim.
Meu último lançamento “Tanatose”, trouxe à tona assuntos delicados como abuso e exploração sexual, pessoas que se submetem ao prazer do outro, com e sem o seu consentimento, porque no final das contas uma coisa acaba levando a outra. Fugimos, e ao mesmo tempo, mantemos o padrão. Escravizamo-nos, de uma forma ou de outra… Seja por estarmos sozinhas, ou por falta de conhecimento. E a sexualidade que deveria ser natural, sadia, acaba sendo tolhida ou extrapola os limites da tão chamada “normalidade”.
Explicando o título do livro: “Tanatose” é uma estratégia de defesa usada por alguns animais, que fingem a própria morte para escapar de predadores. Na minha história, Libelle também usou esse recurso, quando era abusada pelo próprio pai, ela fingia que dormia, enquanto era abusada, pois “abrir” os olhos e confrontá-lo seria muito mais difícil, tão difícil que ela preferiu fugir e vagar no mundo à sua própria sorte. Sujeitar-se a estranhos era melhor do que encarar a forma com que a vida se apresentava para ela.
Muitas leitoras após lerem esse livro vieram me procurar no privado perguntando: “Vicky, essa história é verdadeira? Foi inspirada em alguém? Quero que você saiba que essa leitura mexeu muito comigo… Levei horas pensando em como avaliar.”
A resposta que dei inúmeras vezes foi: “Minha personagem não é uma pessoa em específico, mas ela representa a história de todas as pessoas que passaram por isso, porque nas pesquisas que eu fiz, todas as situações citadas, em maior ou menor grau, teve uma pessoa que passou por aquilo. Então é uma ficção que acaba sendo real, por representar muitas histórias de terror mantidas embaixo do tapete.
Ou seja, crianças e adolescentes são abusados diariamente, muitas vezes por pessoas muito próximas, “de confiança”, precisamos falar sobre isso. O olhar aos sinais de alerta precisa ser atento e carinhoso, pois não é fácil conseguir a confiança muitas vezes já tão abalada.
Mas acredito que mais do que um olhar cuidadoso, precisamos estar prontos para educar e falar sobre a prevenção com nossas crianças. Estabelecer os limites da intimidade e dizer com todas as letras: “Criança não namora!”; “Você não tem maturidade para isso!”; “AQUI NINGUÉM TOCA!” E se tocar… “Por favor, venha falar comigo, pode ficar tranquilo, em mim você pode confiar.”
Tá, mas e a literatura, Vicky? Digo novamente, ela liberta e que “Tanatose” sirva de alerta, precisamos manter nossos olhos abertos e atentos para que ninguém mais precise se fingir de morto, exceto que esteja brincando, como tão bem fazem as crianças.
Para saber mais é só conferir no Instagram @avickyfenix.
Vicky Fênix